Socialismo: Crônica de um Fracasso não Anunciado
Bem que Fidel Castro avisou, tempos atrás, que o modelo cubano já não servia nem para a própria ilha caribenha quanto mais para exportação.
É verdade que ele deu um leve desmentido depois. Aliás nem desmentido foi. Afirmou apenas que fora "mal interpretado".
Não foi, não. Agora, no fim de semana, seu irmão e sucessor, Raúl Castro, disse rigorosamente a mesma coisa, com outras palavras e maior contundência.
Depois de criticar os "erros" de meio século de socialismo, o presidente afirmou, com todas as letras: "Ou retificamos ou já se acaba o tempo de continuar caminhando à beira do precipício". Mais: "Afundaremos e afundaremos o esforço de gerações inteiras".
Raúl Castro estava traçando os rumos para o 4º Congresso do Partido Comunista de Cuba, previsto para abril e cuja tarefa central será, sempre segundo o presidente, "transformar conceitos errôneos e insustentáveis a respeito do socialismo, muito enraizados em amplos setores da população durante anos, como consequência do excessivo enfoque paternalista, idealista e igualitário que instituiu a revolução em busca da justiça social".
É o mais perto que consegue chegar um dirigente político, mais ainda em uma ditadura, de confessar: "Fracassamos".
Fracassar talvez seja uma palavra forte demais. Se fosse possível abstrair o fato de que se trata de uma ditadura --e eu não acho que seja possível fazer tal abstração-- até daria para dizer que o castrismo trouxe alguns progressos para a ilha, especialmente em termos de educação e saúde.
Mas fica claro que os progressos se deveram, em grande medida, ao patrocínio da União Soviética. Cortado este, começou o que eufemisticamente se chamou de "período especial", uma era de penúrias intensas que só foram amenizadas quando surgiu um novo patrocinador, na figura da Venezuela de Hugo Chávez.
O problema, para os cubanos, é que Chávez não tem bala suficiente para sustentar Cuba, como tinha a extinta URSS.
Consequência: tornou-se inevitável mudar o socialismo para um regime em que a iniciativa privada conviverá com um Estado ainda muito presente, mas que já não controlará toda a economia (hoje, controla 90%).
Na verdade, o que se pretende mudar é o que os cubanos ironicamente chamam de "sociolismo", uma mistura de socialismo com ócio e com compadrio. Um exemplo basta: país agrícola, Cuba importa 80% dos alimentos que consome, enquanto a metade das terras aráveis, em mão de empresas estatais, simplesmente não produz.
O excesso de paternalismo aparece no fato de que o Ministério da Construção emprega 8 mil pessoas, entre operários e pedreiros, para sua atividade-fim, mas tem 12 mil vigilantes na folha de pagamento.
Vigiam o quê? Em tese, nada, porque, em sendo uma propriedade estatal, ninguém teria interesse em roubá-la porque estar-se-ia roubando de si mesmo, certo?
Errado: o "homem novo" que a revolução deveria construir, segundo Che Guevara, imbuído dos nobres ideais igualitários do socialismo, não foi parido nem mesmo depois de 50 anos de comunismo.
Eu deveria ter me dado conta dessa lacuna no já remoto ano de 1977, na primeira viagem a Cuba, quando ainda era uma ilha proibida para brasileiros.
Cheguei impregnado do espírito do livro "A Ilha", de Fernando Moraes, então apenas um repórter, não o autor consagrado de hoje. O livro era um tremendo oba-oba para a revolução. O detalhe menor mas que me chamou a atenção era assim: Moraes dizia que os trabalhadores cubanos não aceitavam gorjetas, esse feio hábito capitalista.
Acreditei. O "boy", não tão "boy" assim, que levou minha mala ao apartamento do Hotel Nacional, depositou-a no chão e ficou esperando. Como eu achava que gorjeta não entrava na cabeça dele, também fiquei esperando que ele saísse. E ele esperando que eu pusesse a mão no bolso e sacasse pesos cubanos para afrontar o espírito revolucionário. E eu esperando que ele se imbuísse de tal espírito e fosse embora sem gorjeta.
Ao fim de cinco minutos, desisti, dei a gorjeta, ele agradeceu e finalmente foi embora.
Assim como Fernando Moraes, um punhado grande de intelectuais e artistas brasileiros e de muitos outros países também ficou entoando canções de amor incondicional e eterno à revolução. Por cegueira ou covardia, foram incapazes de dizer "o rei está nu" ou, ao menos, "ei, vocês estão caminhando à beira do precipício", para usar a imagem de Raúl Castro.
Foram os irmãos Castro que tiveram que fazer o papel de intelectuais porque a grande maioria deles preferiu demitir-se de seu dever inalienável de funcionarem como grilos falantes de qualquer modelo. Triste.
Fonte: Folha de São Paulo.
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